A Segunda Pele

A Segunda Pele

Sempre que termina um ciclo de exposições, Balbina Mendes tem por norma registar num livro/catálogo as impressões, a apreciação, as apresentações que durante a itinerância foram produzidas. Assim aconteceu, por exemplo, com” Margens Douro Nascente Foz” e ” Máscaras Rituais do Douro e Trás-os-Montes.” A publicação destes livros, sempre muito cuidados do ponto de vista do seu conteúdo e do arranjo gráfico, constituem uma espécie de culminar de um projeto e de um tema que durante um certo tempo a assoberbou de trabalho, de pesquisa e de criação artística.  E que fica para memória futura.

Mas a verdade é que nem sempre se consegue fechar a porta a certos temas. Ela fica entreaberta e uma réstia de luz teima em impor a sua força. Assim aconteceu com o tema das máscaras. As suas múltiplas ligações antropológicas, sociológicas, culturais obrigaram, exigiram a Balbina Mendes um outro entendimento. A sua influência mágica, a poética que encerram e que continua viva, trouxeram à pintora não a serenidade do trabalho feito, mas a inquietação e o desassossego.

Como assim?, perguntarão.

Podemos dizer, numa primeira análise, que a máscara oculta o rosto, retira-lhe a vida e com ela, aparentemente, a expressividade e o sentido. É, por assim dizer, a própria antítese da face humana. Mas se repararmos bem no uso universal da máscara sobretudo nas sociedades tradicionais (como a que Balbina Mendes tão bem conhece) temos que reconhecer que a máscara longe de ocultar revela; reconhecer que ela retira a expressão pessoal do rosto, mas manifesta aquilo que na vida quotidiana não se pode ver; que ela serve para descobrir um certo sentido do rosto que está para além das aparências.

Invisibilidade, alteridade (um outro eu), identidade são conceitos que a pintora cruza, baralha e recria, conferindo significados plurais a essa relação rosto/máscara.

Fervilhavam no seu espírito inquieto mil questões que precisavam de resposta. E para encontrar o ansiolítico, o calmante, de que precisava, Balbina recorreu a novas técnicas e a novos materiais que lhe abriram um leque de possibilidades criativas que ela soube usar com mestria. Entraram para o seu dicionário artístico privado novos vocábulos: verbos como fragmentar, sobrepor, camuflar, ocultar, desmembrar, imprimir, e materiais como o plexiglass e ainda o recurso às palavras, ao texto escrito aposto ao rosto,

E o extraordinário é a forma como esta conjugação de imagens desenvolveu uma nova semântica, uma narrativa polissémica, em que máscara e rosto se confundem, se enriquecem, se distanciam, se escondem, se colam.

E fá-lo num jogo de sedução entre o que somos, o que parecemos, o que queremos ser, o que gostávamos de ser…. O que gostaríamos de esconder, usando o sortilégio do espelho, do reflexo, da dupla face, da miragem.

 Ou seja, por meio destes recursos criativos da arte, este duo (o rosto e a máscara) procurou abrir o caminho à compreensão do que há de mais universal no homem – a vida, a morte e as suas relações.

“A Segunda Pele” chamou a essa nova fase da relação rosto/máscara.

Passado e presente; ancestral e contemporâneo; realidade e ficção. Dicotomias que a sua obra evidencia. Encontrou na poesia, sobretudo na de Fernando Pessoa e seus heterónimos (ou poderemos dizer suas diferentes máscaras?), o filão para desenvolver essa múltipla relação e essa dualidade.

A exposição “A Segunda Pele” fez e talvez ainda continue a fazer a sua itinerância. Mas chegou o momento de guardar em livro.

O que é este livro? O que podemos encontrar no livro?

Primeiro que tudo é um livro com letra maiúscula, que não deixa ninguém indiferente pela força que dele emana. A capa é já antecâmara para o que aí vem no seu interior. É um livro que apetece abrir, com a curiosidade que a capa despertou. O livro é uma galeria de retratos e máscaras, de pessoas que foram significativas na vida pessoal da pintora (a mãe, as filhas, os netos, herdeiros também eles de uma certa cultura) e decisivas na construção e preservação desse espaço mítico que é Trás os Montes. Encontramos, entre outras, figuras como Guerra Junqueiro, António Maria Mourinho, Abade de Baçal, Adriano Moreira, José Meirinhos, Miguel Torga. É um livro que apetece saborear, que apetece folhear com a lentidão que permite apreciar não apenas o todo, mas cada pormenor, cada letra, cada palavra que de forma artística e intencionalmente significativa justapôs em vários retratos recorrendo à literatura e à língua mirandesa. Há uma cadência criada na cor intervalada com uma espécie de separadores neutros que organizam e geram estímulo para a observação dos detalhes pictóricos das páginas seguintes. O nosso olhar voa entre os textos de análise dos muitos especialistas em arte, académicos, admiradores da pintora que deixaram o seu testemunho, e detém-se de novo na explosão de cor e nos poemas de Fernando Pessoa, de Pascoaes, de Saramago, que embriagaram e seduziram Balbina Mendes. E depois há a voz da própria pintora.

Balbina Mendes não se esquivou a mostrar o seu sentir. Deixou que o seu eu-sujeito se expressasse nas obras que criou, e em momentos chave do livro transformou-se em objeto de si própria, analisando com palavras suas ou recorrendo aos poetas no processo criativo que a orientou:

Diz ela;

“Ao ler O ano da morte de Ricardo Reis, encontrei o ponto de contacto com a série de pinturas que venho desenvolvendo – “A Segunda Pele” – é Pessoa e Ricardo Reis um outro? Ou dois num só? Ou os inúmeros que habitam em nós?

Ou

Procuro despir-me do que aprendi/ procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram/e raspar a tinta com que pintaram os sentidos/ desencaixotar as minhas emoções verdadeiras/ desembrulhar-me de ser eu (Alberto Caeiro).”

E concluo dizendo que neste livro a artista depôs a máscara.  Este livro é o local onde Balbina Mendes, uma genial contadora de histórias, revelou as memórias de uma vida projetando-as para o futuro. 

Helena Gil, ex Diretora Regional de Cultura do Norte 

The Second Skin

Whenever an exhibition cycle ends, Balbina Mendes usually takes down in a book/catalogue the impressions, the appreciation and the presentations that were produced during the tour. This happened, for examplewith“Margens Douro Nascente Foz” and “Máscaras Rituais do Douro e Trás-os-Montes.” The publication of these books, always very careful from the point of view of their content and graphic arrangement, constitute a kind of culmination of a project and a theme that for a certain time overwhelmed her with work, research and artistic creation. And that remains for future memory.

But the truth is that you can’t always close the door on certain topics. It stays ajar and a ray of light insists on imposing its strength. This happened with the theme of the masks. Their multiple anthropological, sociological and cultural connections forced and demanded a different understanding from Balbina Mendes. Their magical influence, the poetics that they contain and that remains alive, brought to the painter not the serenity of the work done but concern and unrest.

‘How so?’ you will ask.

We can say, in a first analysis, that the mask hides the face, that it takes away its life and with it, apparently, its expressiveness and meaning. It is, so to speak, the very antithesis of the human face. But if we take a good look at the universal use of masks, especially in traditional societies (like the one that Balbina Mendes knows so well), we have to recognize that the mask, far from hiding, reveals; that it removes personal expression from the face but manifests what cannot be seen in everyday life; that it serves to discover a certain meaning of the face that is beyond appearances.

Invisibility, alterity (another self), identity are concepts that the painter crosses, shuffles and recreates, giving plural meanings to this face/mask relationship.

Thousands of questions that needed answers were burning in her restless spirit. And to find the anxiolytic, the calming, that she needed, Balbina resorted to new techniques and new materials that opened up a range of creative possibilities that she was able to master. New words entered her private artistic dictionary: verbs such as fragmenting, overlaying, camouflaging, hiding, baring, printing, and also materials such as plexiglass or even the use of words, the written text affixed to the face.

And the extraordinary thing is the way in which this combination of images developed a new semantics, a polysemous narrative, in which mask and face are confused, enriched, distanced, hidden, glued together.

And this is done as a game of seduction between what we are, how we look like, what we want to be, what we would like to be… What we would like to hide, using the magic of the mirror, the reflection, the double face, the mirage.

In other words, through these creative resources of art, this duo (the face and the mask) sought to open the way to understanding what is most universal in man – life, death and their relationships.

“Second Skin” did she name this new phase of the face/mask relationship.

Past and present; ancestral and contemporary; reality and fiction. Dichotomies that her work highlights. She found in poetry, especially that of Fernando Pessoa and his heteronyms (or could we say his different masks?), the vein to develop this multiple relationship and this duality.

The “Second Skin” exhibition has been on tour and will perhaps continue to travel. But the time has come to keep it in a book,

What is this book? What can we find in the book?

First of all, it is a book with capital B, which leaves no one indifferent due to the strength that emanates from it. The cover is already an antechamber to what comes inside. It is a book that you want to open, with the curiosity that the cover has aroused. The book is a gallery of portraits and masks, of people who were significant in the painter’s personal life (her mother, daughters, grandchildren, also heirs of a certain culture) as well as decisive in the construction and preservation of this mythical space that is Trás-os-Montes. We findamongothers, figures such as Guerra Junqueiro, António Maria Mourinho, Abade de Baçal, Adriano Moreira, José Meirinhos, Miguel Torga. It is a book that you want to savour, that you wish to leaf through with that slowness that allows us to appreciate not only the whole but every detail, every letter, every word that, in an artistic and intentionally meaningful way, she juxtaposed in several portraits using literature and the Mirandese language. There is a cadence created in the colour intervals with a kind of neutral separators that organize and generate stimulation for observing the pictorial details of the next pages. Our gaze flies between the analysis texts of the many art specialists, academics, admirers of the painter who left their testimony, and stops again at the explosion of colour and the poems of Fernando Pessoa, Pascoaes, Saramago, who inebriated and seduced Balbina Mendes. And then there is the voice of the painter herself.

Balbina Mendes did not shy away from showing her feelings. She allowed her self-subject to express itself in the works she created, and in key moments of the book she transformed herself into an object of her own, analysing with her own words or turning to the poets in the creative process that guided her:

She says,

‘When reading The Year of the Death of Ricardo Reis, I found the point of contact with the series of paintings I have been developing – “The Second Skin” – is Pessoa and Ricardo Reis another one? Or are they two in one? Or the countless ones that dwell within us?

Or

I try undressing myself from what I have learned/ I try forgetting the method to recall what I was taught/ and scrapping off the paint with which they painted my senses/ unboxing my true emotions, unwrapping myself from being me (Alberto Caeiro).”

And I conclude by saying that in this book the artist took off her mask. This book is the place where Balbina Mendes, a genius storyteller, revealed the memories of a lifetime projecting them into the future.

Helena Gil, former Regional Director of Culture in the North